Deputado Federal Lebrão e fazendeiro teriam ameaçado famílias por terras em Rondônia
“Comigo não vale isso de documento, não. Eu não abro mão dessa área. Vai ser minha” é o que o agricultor João de Mendonça relata ter ouvido do deputado federal José Eurípedes Clemente (UNIÃO-RO), o Lebrão, quando o chamou para conversar em sua casa, em setembro de 2022. Há mais de 30 anos vivendo da plantação de melancia e mandioca nas margens do Rio Machado, João estava preocupado quando falou com a Agência Pública, em abril deste ano.
Nos últimos meses, ele tinha visto quase todos seus vizinhos largarem seus roçados, às vezes até antes da colheita, segundo ele, sob pressão de homens que apareceram na área dizendo variações de uma mesma frase: “essa terra é minha, tenho o documento, você tem prazo pra sair”.
Na vila beiradeira de Demarcação, localizada no Baixo Rio Madeira, em Porto Velho (RO), são dois os homens vindos de fora que teriam chegado dando ordens, segundo os relatos obtidos: Lebrão e Guedes. O primeiro, deputado federal por Rondônia eleito em 2022, visita regularmente a nova fazenda que estaria formando, com terras tomadas ou compradas a preços abaixo do mercado – segundo relatos de ribeirinhos que alegam ter sido pressionados e expulsos.
Em casos que envolveriam ameaças diretas, o segundo homem, o fazendeiro Guedes Arcanjo Tavares, repetiria, segundo os relatos, também o mesmo procedimento para formar outra fazenda que soma milhares de hectares ao lado da área do deputado Lebrão. Nesta região, imagens de satélite e multas ambientais mostram que o desmatamento cresceu nos últimos cinco anos.
Ao percorrer as margens do Rio Machado, perto da altura do encontro com o Rio Madeira, a Pública entrevistou ao menos 12 pessoas que dizem ter sofrido ou testemunhado casos de ameaças e expulsões vindas de Lebrão ou Guedes Arcanjo. Alguns depoimentos serão mantidos em anonimato pela segurança das fontes. A reportagem acessou também documentos cartoriais, fotos e vídeos das supostas investidas do deputado e do fazendeiro.
Avener Prado/Agência Pública
Famílias ribeirinhas do Baixo Madeira relatam ameaças de expulsão e acusam fazendeiros de grilagem
O distrito de Demarcação é parte de Porto Velho que, em nove dos 10 últimos anos, esteve entre os municípios que registraram maiores índices de conflitos rurais na Amazônia Legal, como revelou o projeto Mapa dos Conflitos, baseado em dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em casos que vão de ameaças de morte à tortura – passando por humilhação verbal e violência física – 98 pessoas foram vitimadas no município no período analisado.
“Estamos todos praticamente na situação de sermos expulsos e perdermos qualquer terra”, relata Josué*, ribeirinho nascido e crescido na beira do Rio Machado. “Eu tinha uma terra pra plantar do lado de lá e tive que sair pra não correr risco de vida”. Segundo ele, após várias ameaças e uma noite em que foi acordado por tiros, teria fugido da área que cultivava.
Já Dona Firmina*, uma senhora de 51 anos, beiradeira que toda vida viveu da plantação complementando a pescaria e que não tem outra área para reinventar o sustento, diz sem esconder o desespero na voz: “a gente tentou ficar, mas disseram que iríamos morrer eu e meu marido. Aí saímos na carreira”.
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Josué e Firmina cultivavam roçados na margem oposta ao vilarejo de Demarcação, mais acima no rio, em uma área que Guedes Arcanjo afirma ter comprado. Vizinhas dessa área, outras famílias tinham plantações e casas em terrenos que agora o deputado Lebrão e seu filho, Ângelo, controlam. Quando esteve na região, a reportagem ouviu relatos em que os nomes do deputado e do fazendeiro se alternam, como supostos responsáveis pelas expulsões – alguns ribeirinhos alegam ter sido ameaçados por Guedes, enquanto outros que viviam mais abaixo no rio dizem ter sido pressionados pelo deputado.
“Eu praticamente dei de presente a terra. Porque senão tava morto lá”, resume um ex-morador da área controlada por Lebrão, que diz ter caído em desgosto quando viu que funcionários do deputado estavam entrando na parte de trás de seu terreno. Já com a idade avançada, acabou vendendo a área barato, indo se refugiar perto dos filhos na cidade.
Avener Prado/Agência Pública
Vilarejo de Demarcação, em Rondônia: moradores falam que situação de conflitos está no limite
“Aqui em Demarcação a situação está chegando no limite. Além do problema da terra, vemos muitos casos de agressão por termos nosso direito arrancado, como o que aconteceu com um senhor que quase foi afogado por pescar no lago que antes todo mundo usava”, explica uma moradora da comunidade.
A reportagem tentou contato telefônico com Guedes Arcanjo, que não retornou até a publicação. O deputado Lebrão concedeu entrevista e declarou que as pessoas com quem ele e seu filho fizeram negócios para compra de áreas não teriam sido pressionadas nem ameaçadas. Segundo ele, não havia nenhuma família que ainda morava na área em questão. “Você deveria fazer uma reportagem vindo aqui in loco. Não ficar ouvindo fantasia e bobagem de pessoas que nunca sofreram nenhum tipo de ameaça”, disse.
“Se você conversasse com as verdadeiras pessoas que venderam as terras, vocês veriam que não tem nada a ver essas denúncias”, disse. “Mas acontece o seguinte, hoje é uma questão cultural: quando pessoas de um outro estilo chegam numa região, muitas vezes tem pessoas que se incomodam, né? Principalmente a pessoa que está ligada ao tráfico de drogas. Que vivia escondendo droga naqueles barracos [dos ribeirinhos]. Ali tinha muita coisa que acontecia lá na calada da noite que felizmente acabou,” disse o deputado.
À Pública, Lebrão afirmou ainda que, junto com seu filho Ângelo, presta assistência aos ribeirinhos e faz manutenção nas estradas rurais que atendem a população.
“Pra mim ainda não mostraram a arma, mas só falta isso”
A faixa de terras da margem esquerda do Rio Machado, que fica de frente à Demarcação, separada do vilarejo somente pelo rio, era utilizada por mais de 15 famílias de beiradeiros para a plantação de mandioca e outras roças de subsistência. Antes dos conflitos, os lagos das redondezas serviam para a pesca que complementa a alimentação das comunidades tradicionais.
A região em disputa integra a gleba Rio Preto, uma terra pública, segundo o registro certificado no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Entre as décadas de 1970 e 1990 através de um projeto fundiário do INCRA, pequenos agricultores, seringueiros e ex-soldados da borracha receberam lotes na gleba. Mas dentro da área, de dimensões quilométricas, pedaços permanecem sem registro.
Agora, na margem do rio oposta à Demarcação só restam duas famílias de moradores antigos. “Tem só um senhor e mais o seu João lá, que a gente não sabe como está resistindo”, diz Josué.
Avener Prado/Agência Pública
Beiradeiros reunidos em Demarcação, distrito da capital que se liga a Porto Velho somente por transporte fluvial
João de Mendonça, o agricultor citado no início da reportagem que chamou o deputado para conversar em sua casa em setembro de 2022, insiste em não fugir de sua terra. “Eu sou uma pessoa que não pode sair. Tudo que eu tenho está lá, não tenho nem como fazer mudança”, diz. Por isso, ainda em 2018, quando começaram as primeiras investidas dos que chama de ‘homens de fora’ na região, decidiu se preparar: juntou economias e contratou um advogado para iniciar o processo de reconhecimento de usucapião do terreno de onde tirou o sustento para criar seus quatro filhos. João conhece a dinâmica da ocupação da terra em Rondônia, estado que há décadas se mantém entre os campeões em casos de conflitos que envolvem grileiros, milícias rurais e pistolagem.
Mas nem o apoio jurídico nem o processo de usucapião teriam lhe dado segurança. Em setembro de 2022, segurando nas mãos uma ata cartorial que registra seu pedido de reconhecimento do usucapião, com documentos que comprovariam sua presença e pequena produção agrícola na área desde meados dos anos 2000, ele diz ter tentado conversar com o deputado Lebrão. “Quando mostrei o documento ele disse que não ia abrir mão da terra e que meu advogado não conseguiria resolver nada porque documento não vale com ele, não”.
Desde então, segundo João, a pressão do deputado teria aumentado. Em dezembro, de acordo com seu relato, foi aberta uma estrada que ultrapassou a margem de sua propriedade, destruindo parte das cercas do seu sítio.
Avener Prado/Agência Pública
João de Mendonça, 63, agricultor em conflito com deputado Lebrão diz que não vai fugir de sua terra
No final de janeiro, oito homens teriam invadido os fundos de seu terreno, uma área de floresta amazônica conservada, e ali teriam desmatado cerca de 20 hectares. “Eu estava fazendo covas para plantar a melancia e comecei a escutar a zuada da motosserra. Aí fui avisar o seu João que estavam fazendo derrubada dentro da área dele”, conta o genro do agricultor, que diz ter testemunhado a invasão. “Eles estavam em oito peões derrubando tudo”.
No final do dia, seu João foi até a área e filmou a degradação. Gravou um vídeo narrando: “Essa é a derrubada que o deputado Lebrão mandou fazer. Somos tratados aqui como se fossemos cachorro”. João conta ter enviado o vídeo para alguns contatos como uma denúncia. A resposta do deputado chegou logo e direto em seu WhatsApp.
Segundo registro da conversa acessado pela reportagem, Lebrão escreveu para o agricultor: “Parabéns pela denúncia mentirosa. Sempre tratei homens cachorro com respeito. Ok”.