Metade da bancada da Amazônia no Senado diz sim ao PL do marco temporal, e coloca em risco direitos dos povos indígenas
A tramitação e a aprovação acelerada do projeto de lei que institui a tese do marco temporal (PL 2903/2023) nos processos de demarcação de terras indígenas no Brasil, por parte do Senado Federal, mostra, mais uma vez, que a maioria da bancada dos parlamentares eleita pelos nove estados da Amazônia Legal não tem a mínima afinidade com as demandas das populações tradicionais da região, muito menos com a pauta de proteção da floresta. Dos 27 senadores da região, 13 disseram sim à proposta que se choca com a inconstitucionalidade do tema já definida pela Suprema Corte, Mesmo assim, a bancada bolsonarista da Amazônia quer empurrar, goela abaixo, o marco temporal nas leis do país.
Desde o início da tramitação da matéria no Senado, foram os senadores bolsonaristas da Amazônia Legal que fizeram o PL 2903 – outrora PL 490 na Câmara dos Deputados – ganhar forma, sendo aprovado de forma célere. Há a acusação até de “tratoraço” por parte da bancada da motosserra, ao deixar de passar o projeto em outras comissões da Casa, como a de Meio Ambiente e a de Direitos Humanos.
O primeiro passo foi aprovar a matéria na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), presidida pelo bolsonarista acreano Alan Rick (União). Na votação em plenário, ele votou favorável ao marco temporal. Na comissão dominada por senadores ligados ou simpáticos às demandas do agronegócio, o PL 2903 foi aprovado por 13 votos a 3, incluindo o de Sérgio Petecão (PSD-AC). Agora, em plenário, o senador justificou sua ausência por estar em missão oficial.
Aprovada na CRA, a pauta seguiu direto para a mãe de todas as Comissões, a de Constituição e Justiça (CCJ). Lá, sua relatoria foi entregue de mãos beijadas a um senador historicamente ligado às demandas do agronegócio: Marcos Rogério, do PL de Rondônia.
Bolsonarista ferrenho, ele ganhou notoriedade nacional ao fazer uma defesa eloquente do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a CPI da Covid-19 no Senado. Sua missão, junto com outros colegas, era defender o indefensável: a postura negacionista do antigo governo no trato da pandemia do coronavírus no Brasil, cujo efeito foram mais de 700 mil mortes. O relatório de Rogério, obviamente, era favorável à aprovação do marco temporal.
Após passar pela CCJ, o PL 6024 seguiu caminho para o plenário. A bancada da motosserra tinha pressa na aprovação ante a tendência do Supremo Tribunal Federal (STF) considerar a tese do marco temporal inconstitucional – o que ocorreu por ampla maioria dos ministros. Outro bolsonarista de Rondônia e também porta-voz do agronegócio, o governador Marcos Rocha (União) entrou com recurso para que o STF suspendesse o julgamento do marco temporal. Ele foi derrotado.
Mas, no Senado, a ofensiva não teve réguas. Além de aprovar o marco temporal, a bancada do boi colocou dentro do PL 2903 penduricalhos que colocam, ainda mais, os indígenas e seus territórios em situação de vulnerabilidade. É o caso que permite o contato com grupos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”, como define o artigo 28.
Já o parágrafo quarto do artigo 16 permite à União a anulação de territórios indígenas “caso, em razão da alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”, perceba-se que a área não esteja mais sendo aproveitada para um dos principais objetivos da demarcação de TIs, que é a “sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, como define o parágrafo segundo do artigo 231 da Constituição.
Ao todo, o PL 2903 foi aprovado por 43 votos a 21, sendo muitos deles de parlamentares oficialmente integrantes da base de sustentação do governo Lula (PT). Entre os principais pontos da proposta, fica apenas permitido demarcar novos territórios indígenas nas áreas que estavam ocupadas por eles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal — tese jurídica que ficou conhecida como marco temporal. O projeto também prevê a exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou com contratação de não indígenas.
Enquanto o presidente da República tenta manter uma agenda positiva para a proteção da Amazônia e suas populações tradicionais, no Congresso Nacional uma base parlamentar nada afinada com tais temas faz avançar propostas que fragilizam a preservação ambiental e os direitos dos povos indígenas.
O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA) busca uma saída honrosa, mesmo não tendo certeza se funciona. Ele informou que o presidente Lula considera sancionar o PL 2903, porém, com “a possibilidade de vetar apenas os ‘jabutis’ – trechos que extrapolam a tese central. “São estranhos ao foco do PL, a decisão final caberá ao presidente”, assinalou Wagner.
A senadora Zenaide Maia (PSD-RN) afirmou que há casos em que os indígenas mudaram de local forçadamente. “Todos sabemos que muitas comunidades se deslocaram por pressão do garimpo ilegal. Quantos outros não fizeram isso?”, afirmou a senadora, que votou contra o PL.
Refresco na memória: nos anos 1980, o coronel da Funai Zanone Housen propunha, sob protestos gerais, “critérios de indianidade”. Dava curso a insanidades praticadas desde o final dos anos 1970, quando a Funai, dirigida então por coronéis, criava dois institutos jurídicos capazes de desestruturar não só os movimentos indígenas, mas os próprios povos.
O sentido da proposta era culminar uma perseguição atroz, ilegal e genocida que compreendia prisões, deslocamentos, desterritorializações de povos inteiros, a exemplo dos Krenak, Pataxó Hã hã hãe, Panará, Nambiquara, Guarani e o assassinato de mais de oito mil indígenas, conforme contabilidade da Comissão da Verdade.
Relator, um ignorante da história
Narcisista desde o seu tempo de rádio em Ji-Paraná (RO), ego inflado desde a defesa radical do ex-presidente Jair Bolsonaro na CPI na Covid-19, o senador bolsonarista Marcos Rogério era um garoto em 1977, quando alguns empresários de seu município avançavam fortemente sobre as terras dos indígenas Arara e Gavião.
Entre 1976 e 1978 uma empresa de colonização oportunista vendia lotes dentro da linha 7 na T.I. 7 de Setembro, do povo Indígena Paiter Suruí. Paralelamente, aconteciam sucessivos roubos de peixes e de madeira de rios e florestas no extinto território federal.
Não é surpresa que a triste herança dos invasores caiu no colo do senador Rogério. Certamente, a rádio cipó pode ter-lhe soprado – será que ouviu bem? – que o falecido deputado Homero Pereira foi o autor do projeto original dessa tenebrosa façanha, depois de haver subtraído terras dos povos Irantxe e Myky para dar origem à cidade de Brasnorte, em Mato Grosso.
Além de Brasnorte, em outros municípios mato-grossenses indígenas padeceram sob os drásticos efeitos ruralistas: Alto Boa Vista, Barra do Garças , Campo Novo do Parecis, Juína, Novo Mundo, São Félix do Araguaia, Sapezal , Tangará da Serra.
Sobre eles, nuvens de agrotóxicos, empresas governamentais, juízes incompetentes e até o Ministério Público causaram tragédias, seja na permissão da expansão de lavouras de soja, ou na autorização de barragens de hidrelétricas, funcionamento de madeireiras e a expansão da pecuária.
Contaminados choraram a dor da perda, outros morreram diante de rios assoreados, contaminados, ou sufocados por sucessivas queimadas que poluem diversas regiões.
Ficará assim? E agora, José – eis a pergunta ao Congresso, ao Governo e ao STF.
Longe de Brasília, a reação indígena
A reação foi imediata, pelo menos na fronteira Brasil-Peru, onde Francisco Piyãko, do povo Ashaninka, liderança da aldeia Apiwtxa, e coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), afirmou ao Varadouro: “Esses parlamentares e esse grupo que jogam pelos interesses de destruir os povos indígenas terão muita dificuldade de vencer, e eu tenho certeza de que o povo brasileiro não é esse que está lá no Congresso.”
O líder Ashaninka informou que os povos Indígenas estão se preparando para enfrentar quaisquer posturas do Congresso Nacional que representem “guerra” ao que fora decidido pelo STF, “com base na Constituição Federal e seus princípios.”
No final da semana passada, líderes de povos indígenas do país reunidos em Brasília comemoravam a decisão do Superior Tribunal Federal, rejeitando, por nove votos a dois, o tal marco temporal, oriundo da bancada ruralista no Congresso Nacional.
“Não queremos entrar numa briga entre STF e Congresso, mas, sim, que os nossos direitos sejam respeitados. Essa guerra está acima do querer dos povos indígenas. O Estado precisa ter coerência e o povo brasileiro agir de maneira muito responsável para que a situação não se agrave mais do que até onde chegou”, avalia Piyãko.
Conforme ele previu, a resistência indígena a essa mudança de rumo será feita “dentro da democracia, e estamos vivendo uma”.” “Parece que o Congresso age de má-fé contra os povos indígenas. Nós não estamos aqui nos aventurando; esta é uma luta que vamos ter até o último indígena estar de pé, não vamos nos render nem nos entregar e aceitar isso.”
“Estava muito claro que eles não se conformariam com a decisão do STF: A postura do Congresso Brasileiro hoje dá vergonha. Nós, povos indígenas, estamos com uma compreensão de país e do mundo muito mais avançada, e trabalhamos dentro do século XXI.” Para Piyãko, “a maldade terá consequência, porque não é apenas uma questão dos povos indígenas, mas da Humanidade.”
TV Varadouro